Quando o sequestrador, o pedófilo, o traficante, o estuprador e o assassino torpe tomam vidas, corrompem, maculam corpos e mentes eles atingem muitos mais que suas vítimas, eles assombram nossas vidas, nossos filhos, nossa liberdade, eles violentam nossa consciência, transformam-nos em pessoas dominadas pelo medo e, o pior, nós aos poucos nos anestesiamos e nos empobrecemos como seres humanos. Transformamo-nos em assistência inerte, apavorada, omissa, trancados como se fôssemos nós os malfeitores, blindados nos carros e nos corações, rezando pela nossa segurança, nosso conforto, para que o mal e a violência continuem lá fora, afetando apenas aos outros. A violência nunca fica só lá fora, ela nos atinge sempre que a banalizamos e nos acostumamos com ela.
Quando o político corrupto expõe seu desdém, sua desfaçatez, sua ganância, seu enriquecimento ilícito e nada acontece, além do espetáculo sórdido do corporativismo da classe a proteger seus acordos, seus interesses espúrios, seu direito de fazer o mesmo, impunemente, ele não está apenas aviltando os valores democráticos, desmoralizando o mandato popular, insultando o eleitor, a nação, ele está nos fazendo cúmplices. Sim! Nossa descrença na Justiça, nossa indignação apática, nossa incapacidade de nos surpreendermos nos transforma em cínicos, em maus cidadãos, em comparsas que consentem porque calam. Os corruptos fazem tudo às claras e nós tudo vemos, não há mistério; nós como eles não temos vergonha na cara, somos nós que ajudamos a manter seus esquemas fabulosos elegendo-os, perpetuando-os no governo, viabilizando seu projeto de poder. Nos contaminamos como fumantes passivos.
Quando a vulgaridade torna-se regra, sem limites de exposição e influência, quando nossas meninas se vestem como mulheres vulgares, caricatas, quando homens e mulheres consomem-se, medem-se e descartam-se como mercadorias e os relacionamentos acabam em pornochanchada, algo muito perverso ou inverso acontece: perdemos a inocência, a dignidade, a auto-referência, o amor próprio. Passamos a nos comportar como se estivéssemos numa vitrine, numa prateleira, num leilão, desfigurados por cirurgias, silicones, anabolizantes, querendo ser comprados, consumidos, legitimados pelos outros. Nos reduzimos a muito pouco.
Quando nos recusamos a aceitar o passar do tempo, a velhice, a morte nós trocamos sabedoria por vaidade, experiência por negação, serenidade por insatisfação. Passamos a viver ansiosos com os prazos de validade que a cultura nos impõe: não há vida fora da juventude! Que triste dilema: juventude sintética versus velhice mascarada. Não queremos ser imortais por nossas obras e artes, queremos ser imorríveis... Bom, só há uma solução para quem não quer envelhecer: morrer jovem. Como um rio com o seu curso inexorável, começamos a morrer no momento em que nascemos, correndo inevitavelmente em direção à foz. Fundamental é lembrar que o que faz do rio um rio é o percurso, não o desaguamento. Quando nos convencemos de que é feio envelhecer desmerecemos todos os anos que vivemos. Tornamo-nos indignos, mal agradecidos.
Viver é mesmo complicado, um fogo cerrado, um jogo sofisticado, uma dança apaixonada. Difícil é ver em nós mesmos o que apontamos nos outros: os enganos, as fragilidades, as hipocrisias. Duro é constatar as marcas que carregamos por tudo que nos afeta, direta ou indiretamente, só porque vivemos afinal, "o simples bater de asas de uma borboleta na China afeta um terremoto na América".
Hilda Lucas
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