quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Encostei-me - Fernando Pessoa


    Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
    E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
    A minha vida passada misturou-se com a futura,
    E houve no meio um ruído do salão de fumo,
    Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
    Ah, balouçado
    Na sensação das ondas,
    Ah, embalado
    Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
    De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
    De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
    Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
    Ah, afundado
    Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
    Irrequieto tão sossegadamente,
    Tão análogo de repente à criança que fui outrora
    Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
    Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
    Ah, todo eu anseio
    Por esse momento sem importância nenhuma
    Na minha vida,
    Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos ---
    Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
    Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
    E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.


    Álvaro de Campos, um dos heterônimos de 
    Fernando Pessoa

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