sábado, 24 de dezembro de 2011
Compras de Natal - Cecília Meireles
A cidade deseja ser diferente,
escapar às suas fatalidades.
Enche-se de brilhos e cores;
sinos que não tocam, balões que não sobem,
anjos e santos que não se movem,
estrelas que jamais estiveram no céu.
As lojas querem ser diferentes,
fugir à realidade do ano inteiro:
enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro,
fios de ouro e prata, cetins, luzes,
todas as coisas que possam representar beleza e excelência.
Tudo isso para celebrar um Meninozinho
envolto em pobres panos, deitado numas palhas,
há cerca de dois mil anos,
num abrigo de animais, em Belém.
Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes,
grandes e pequenos,
e gastaremos, nessa dedicação sublime,
até o último centavo,
o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros,
pois, na loucura do regozijo unânime,
nem um prendedor de roupa na corda
pode custar menos do que isso.
Grandes e pequenos,
parentes e amigos são todos de gosto bizarro
e extremamente suscetíveis.
Também eles conhecem todas as lojas e seus preços
— e, nestes dias, a arte de comprar
se reveste de exigências particularmente difíceis.
Não poderemos adquirir a primeira coisa
que se ofereça à nossa vista:
seria uma vulgaridade.
Teremos de descobrir o imprevisto,
o incognoscível, o transcendente.
Não devemos também
oferecer nada de essencialmente necessário ou útil,
pois a graça destes presentes
parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade.
Ninguém oferecerá, por exemplo,
um quilo (ou mesmo um saco)
de arroz ou feijão para a insidiosa fome
que se alastra por estes nossos campos de batalha;
ninguém ousará comprar
uma boa caixa de sabonetes desodorantes
para o suor da testa com que — especialmente neste verão —
teremos de conquistar o pão de cada dia.
Não:
presente é presente,
isto é, um objeto extremamente raro e caro,
que não sirva a bem dizer para coisa alguma.
Por isso é que os lojistas,
num louvável esforço de imaginação,
organizam suas sugestões para os compradores,
valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão.
Numa grande caixa de plástico transparente
(que não serve para nada),
repleta de fitas de papel celofane
(que para nada servem),
coloca-se um sabonete em forma de flor
(que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete),
e cobra-se pelo adorável conjunto
o preço de uma cesta de rosas.
Todos ficamos extremamente felizes!
São as cestinhas forradas de seda,
as caixas transparentes os estojos,
os papéis de embrulho com desenhos inesperados,
os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade
oferecemos aos parentes e amigos.
Pagamos por essa graça delicada da ilusão.
E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias.
Durável — apenas o Meninozinho
nas suas palhas,
a olhar para este mundo.
Cecília Meireles
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