quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A arte da manutenção - Martha Medeiros



Bem que eu gostaria de dizer que esta crônica foi inspirada em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, livro de Robert M. Pirsig que, encantada, comecei a ler aos 24 anos e que nunca terminei. Estava adorando e, de repente, cadê o livro? Emprestei, me roubaram ou esqueci no ônibus. Só sei que o perdi. Um dia retomarei essa leitura, não de onde parei, óbvio, e sim desde o início – minha memória não dá pra mais nada, só reciclando.

Então, como ia dizendo, não me inspirei nesse clássico da filosofia moderna, o que me conferiria certo charme, e sim em fuleiras notinhas de rodapé que se repetem sem que ninguém dê a mínima: cinco feridos em carrinho de montanha-russa, casal despenca da roda-gigante, adolescente atingida por um brinquedo que se desprendeu. Os parques de diversões não estão pra brincadeira.

A responsabilidade é de quem? De quem deveria zelar pela manutenção, mas ninguém está nem aí. Inaugura-se o parque, o tempo passa, tudo enferruja, o equipamento se corrói e salve-se quem puder.

Não resisto à tentação de comparar. Você me conhece. Vou comparar. É ou não é o retrato da maioria das relações?

No começo, tudo parque de diversão. Frio na barriga, vertigem, gritinhos. Depois, acostuma-se, o medo passa, a excitação também. Ninguém mais vê graça na coisa, mas, sabe como é, acostumamos, vira hábito, todo sábado à tarde, toda quarta à noite, os amigos estimulam, vamos lá, vamos lá, até que um se esborracha no chão.

Entre dolorida, surpresa e indignada, a vítima se pergunta: o que é que aconteceu? Os responsáveis pelo parque não zelaram pela segurança, apenas isso, e, como alertei, não estou falando apenas de parques, mas também de casamentos, paixões, amizades, o prazer maior da vida. Era pra ser divertido pra sempre, empolgante pra sempre, inspirador pra sempre, mas a maioria acredita que a longevidade dos amores é atribuição do destino, ele é que tem que tomar conta.

Nenhum encantamento se mantém sem uma boa supervisão. Não basta dar corda e depois cruzar os braços. Não dá pra apertar o botão e depois sair para tomar um lanche. Não se pode confiar na sorte. A engrenagem não se autolubrifica sozinha, os movimentos não se renovam no automático e o tempo não faz mágica. Diversão, como tudo na vida, também exige cuidado.

Mas quem é que tem paciência para o zelo, de onde tirar disposição para renovar o suspiro mil vezes reprisado? Começa maravilhoso, depois fica legal, aí legalzinho, até o “larguei de mão, cansei”.

Manutenção. Talvez eu tenha extraído aqui, por resquícios indeléveis da memória, alguns substratos do emblemático livro de Robert M. Pirsig, mas o assunto ainda é parque de diversões (os reais e os metafóricos), e o perigo que os ronda quando decaem. 


Martha Medeiros

Jornal Zero Hora

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais visitadas