terça-feira, 20 de setembro de 2011

Protopoema - José Saramago



Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos 
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. 
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os 
dedos. 
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, 
e tem a macieza quente do lodo vivo. 
É um rio. 
Corre-me nas mãos, agora molhadas. 
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de 
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para 
mim fluem. 
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o 
próprio corpo do rio. 
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os 
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que 
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa 
dos olhos. 
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas 
águas como os apelos imprecisos da memória. 
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. 
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e 
firme pulsar do coração. 
Agora o céu está mais perto e mudou de cor. 
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo 
acorda o canto das aves. 
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu 
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o 
esplendor maior que acende a superfície das águas. 
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas 
da memória e o vulto subitamente anunciado do 
futuro. 
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar 
calada sobre a proa rigorosa do barco. 
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que 
as aves digam nos ramos por que são altos os 
choupos e rumorosas as suas folhas. 
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, 
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas 
verticais circundam. 
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra 
viva. 
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se 
juntarem às mãos. 
Depois saberei tudo. 

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